sábado, 4 de maio de 2013

O pensamento ariano



“Se nesta cidade, alguém pedir troco ao vendedor de uma loja, ele certamente começará a debater a questão de o Filho ter ou não ter sido gerado por Deus. E se alguém perguntar ao padeiro sobre a qualidade do pão, ele lhe responderá: “O Pai é superior, o Filho inferior”. E se alguém pedir ao atendente nas termas para preparar seu banho, ele vai lhe afirmar que o Filho foi criado ex nihilo (do nada).”
Gregório de Constantinopla


Os antecedentes: Nos três primeiros séculos a idéia de que Cristo era separado de Deus e subordinado a Ele não era tão chocante. Orígenes e Dionísio da Alexandria chegaram a proclamar que Jesus em alguns aspectos era inferior a Deus.[1] Para os cristãos do primeiro século era claro que Jesus era o Senhor[2]. O contato da fé cristã com o mundo exterior abriu caminho para as discussões que tiveram de ser entendidas e interpretadas. Os cristãos tiveram de começar a fazer teologia.[3] Na busca em descobrir aquilo que a razão não consegue compreender, a filosofia surge com suas indagações. O encontro da Revelação da Palavra de Deus e do pensamento grego criou inquietações, daí o nascimento da teologia como meio de reflexão sobre diversos assuntos. O subordinacianismo, uma das interpretações arianas, é fruto da filosofia platônica do “princípio sem princípio”, o “Uno”, o “não-gerado”. Em segundo lugar vem a Inteligência, que para muitos recebe o nome de Logos, ou Verbo. Em terceiro, criado pela Inteligência surge a Alma do mundo. Assim uma degradação emana no princípio da outra.[4] O Logos não poderia ser verdadeiramente Deus[5], mas um segundo deus que está entre o verdadeiro Deus e a multiplicidade de criaturas. Em conseqüência, surgem divergências em relação à natureza do Salvador e da sua relação com o Pai.
Tais divergências foram suficientes para acirrar muitos ânimos.  Em Antioquia, por volta do ano 260 Paulo de Samosata, Bispo daquela comunidade, pregava o monoteísmo, declarando que Jesus era um filho adotivo de Deus; O Logos fora elevado a Deus por sua grandeza moral e seu amor. Paulo chegou a ser excomungado, mas os seus pensamentos não. Ário era natural de Antioquia. Tornou-se presbítero em Alexandria com aproximadamente sessenta anos. Era um homem alto, magro de cabelos grisalhos e um famoso orador e também cantor, ensinava sua teologia de forma cantada. Havia estudado com o professor Luciano. Naquela época, Alexandria era um dos maiores centros teológicos devido às atividades de Orígenes. Desde 312 o Bispo de Alexandria era Alexandre, tornou-se um adversário de Ário, mas não estava à altura dele.
O pensamento Ariano: A idéia de o Eterno ter se tornado homem parecia ser uma grande ofensa. Criou uma linha de interpretação de que o Pai e o Filho não tinham a mesma ousia[6]. Não eram iguais, mas semelhantes[7], “omoiousios”.[8] O Verbo é a primeira criatura de Deus[9] e não Deus. Jesus não era Deus. Existiu um tempo em que Ele não existiu. Esta teoria rejeitada em Alexandria era defendida e ensinada por Ário. Em sua carta a Alexandre, Bispo de Alexandria relata:
“O Filho não é igual ao Pai e também não é da mesma essência que ele. Ele foi criado através da vontade do Pai antes dos tempos e éons, mas não assim que tivesse sido antes de ser criado (...) Cristo é uma criatura feita do nada”.[10]
“Conhecemos um único Deus, o único não-gerado, o único eterno, o único sem princípio, o único verdadeiro, o único dotado de imortalidade, o único sábio, o único bom, o único Senhor, juiz de todos, administrador imutável e invariável, justo e bom”.[11]
Na “Thalia”[12] escreve:
“Anunciamos o Deus não-gerado, em oposição ao que por natureza é gerado; chamamo-lo sem princípio, em oposição ao que se fez no tempo”.[13]
“Aquele que não tem princípio fez do Filho o início de todas as coisas feitas e o promoveu como Seu Filho por adoção. Antes de ele começar a existir, a Mónade existia, mas a Díade não. Conseqüentemente existe a Tríade, mas não com glórias iguais. E as substâncias não se misturam entre si. O superior é capaz de gerar um que seja igual ao Filho, mas não de maior excelência, superioridade ou grandeza. Por vontade de Deus, o Filho é o que é, seja o que for isto. Deus é incompreensível ao Seu Filho. Ele é o que é para Si próprio: o Indizível. O Pai conhece o Filho, mas o Filho não conhece a si mesmo”.[14]
Ário não obedeceu às ordens do Bispo Alexandre quando proibido de sair da Cidade, não tendo medo de seus opositores e viajou para o Oriente conquistando o apoio de muitos. Eusébio de Nicomédia e Eusébio da Cesaréia conseguiram em dois sínodos o declarassem ortodoxo e que fosse reinvestido de suas funções de presbítero. Ário estava preocupado, porque lhe parecia que os cristãos estavam ensinando a existência de três deuses. A unidade da divindade devia ser preservada. A fim de salvaguar­dar a verdade de que Deus é um, ele começou a ensinar que o Filho de Deus era somente o primeiro e mais elevado dos seres criados.  Ele não é eterno, como o Pai é eterno, desde que o Pai vem primeiro que o Filho. Ele foi criado pela vontade do Pai. Todos os demais seres foram criados através dele, Deus o usou como um instrumento para criar o restante do universo, portanto, ele é mais elevado que todos eles. Jesus era uma pessoa com dotes morais tão sublimes que Deus o adotou como Seu Filho. Mas ele não é eterno.  "Antes que ele existisse, ele não era".[15] No começo, Deus era Deus sozinho, sem seu Verbo; e depois Deus era Deus com o seu Verbo.  Se isto é verdade, então o Verbo que se tornou carne em Jesus Cristo, em nenhum senso de verdade é Deus; o próprio Ário admitia isto quando escreveu:
"Mesmo que ele seja chamado Deus, verdadeiramente não é Deus, mas somente participante na graça de Deus como outros o fazem".[16]
A repulsa: Atanásio (295-375), diácono, tomou a defesa dos princípios defendidos por Alexandre e levantou-se contra Ário e seus ensinos com a clara intenção de expulsa-lo da Igreja, gerando mais conflitos. Se os heréticos ganhassem o cristianismo seria destruído.[17] Isto se espalhou por todo o Egito. Ário estava sendo desafiado por seu ensino, e diversos lideres contrários a ele responderam: "Não é isto o que sempre temos crido e ensinado; esta não é a fé pela qual a Igreja sempre viveu". Adorar a Cristo como propunha Ário, foi considerada uma blasfêmia, tal pensamento contradizia a prática da Igreja em que adorar a Cristo é como adorar o próprio Deus.[18]
As conseqüências: As disputas ampliaram-se e chegaram até Constantino, Imperador de Roma, na época não conseguiu demover os pensamentos tanto de Atanásio como de Ário a fim de evitar que o confronto público aumentasse. Ósio, espanhol, era um conselheiro cristão e amigo intimo do Imperador, Bispo de Córdoba foi enviado por Constantino com a posse de uma carta dirigida a Ário e a Alexandre. Sua ida não trouxe os resultados esperados. Convocou um Sínodo que declarou como hereges o pensamento ariano e como conseqüência três Bispos que não aderiram as declarações anti-arianas foram excomungados: Teódoto de Laodicéia, Narciso de Nerônia e Eusébio de Cesaréia. Porém, pouco antes do grande Sínodo em Nicéia foram readmitidos. As pressões de ambos os lados eram fortes. Nesta disputa, a maioria dos Bispos nem sabiam exatamente do que se tratava e o resultado do Sínodo começou a ser questionável. Na visão de Constantino o que estava em jogo era a unidade do Império Romano.
O concílio de Nicéia: o fato motivou o Imperador a interferir diretamente no assunto convocando um Sínodo de todo o Império que deveria se reunir na casa de verão do Imperador, em Nicéia no ano de 325. Nem todos os 400 Bispos foram convidados, apenas 250 lá estiveram, a sua maioria do Oriente. Do ocidente estavam presentes apenas quatro Bispos e de Roma dois presbíteros. O número de Bispos pró Ário era de apenas 20 e a proposta deles foi facilmente derrotada.
O Credo Niceno: Como conseqüência da derrota dos arianos. Um grupo que trabalhou na conciliação formulando a seguinte questão: “gerado da ousia (essência) do Pai”. Constantino[19] exigiu que se usasse o termo homoousia[20]. No Concílio de Nicéia, Eusébio de Cesaréia sugeriu a adoção do credo de sua própria igreja:
“Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus, Deus de Deus, Luz de Luz, Vida de Vida, Filho unigênito, primogênito de toda a criação, por quem foram feitas todas as coisas; o qual foi feito carne para a nossa salvação e viveu entre os homens, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro dia, e subiu ao Pai e novamente virá em glória para julgar os vivos e os mortos; cremos também em um só Espírito Santo”.[21]
 O credo de Eusébio era ortodoxo, porém não resolvia a posição de Ário. Contudo, serviu de base e foi aperfeiçoado pelo concílio:
“Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai unigênito, isto é, da substância[22] do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância[23] com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem[24], e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu e novamente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: “Ele era quando não era” e, “antes de nascer, Ele não era”, ou que “foi feito do não existente”[25], bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência” ou “feito”, ou “mutável”[26], ou “alterável”[27] a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatemiza.”.[28]
Os Conflitos: As divergências geraram conflitos, acirraram ânimos, criaram confusão e partidarismos por todos os lugares. O próprio Sínodo de Nicéia foi palco de diversas acusações entre os Bispos lá reunidos através de moções. Um grande jogo de interesses e poder estavam presentes. Este era o mundo cristão da época.
Após o Concílio: Passado o Concílio cada um interpretava o homoousios a sua maneira. No Concílio de Nicomédia Ário apareceu perante o Imperador a apresentou-lhe uma confissão que se dizia de acordo com o Credo de Nicéia, o resultado foi à readmissão de Ário como os demais que haviam sido excomungados. Os arianos de modo geral retomam sua antiga posição e em alguns casos assume uma maior posição clerical. Atanásio, que havia se tornado Bispo de Alexandria negou-se a reintroduzir Ário ao seu cargo no Egito. Finalmente, depois de jogadas políticas Atanásio fora afastado do cargo sendo enviado ao exílio em Tréveres. Em 336 Ário morre em Constantinopla.

Concluindo: O que seria a unidade de Deus? O conhecimento de Deus se dá de três modos diferentes: Pai, Filho e Espírito Santo? Esta simples definição não responde todas as questões que envolvem este tema. De certa forma a questão ariana ainda persiste e nas religiões monoteístas somente no cristianismo há este embate. Como naquela época talvez tenham dúvidas sobre se Jesus é mesmo Deus, mas a vergonha ou medo de se expor inibem estas manifestações. Podemos dizer assim que a questão continua presente, em menor grau é claro.

Bibliografia


[1] RUBENSTEIN, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus.Trad. Marija C. Mendes. Local: Rio de Janeiro: Ed. Fisus, 2001. p. 29
[2] Mt 16.16, I Co 12.3.
[3] DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. 4a ed. Local: São Leopoldo, RS Editora Sinodal, 1993. p. 63. Coleção História da Igreja. Volume I.
[4] DOYON, J. Cristologia para o nosso tempo. Trad. Adaílton G. Ferreira. Local: São Paulo: Ed. Paulinas, 1970. pp. 249.
[5] Veja a obra Demiurgo do Timeu de Platão.
[6] Ousia: termo grego significa: não da mesma essência.
[7] DOYON, J. Cristologia para o nosso tempo. Trad. Adaílton G. Ferreira. Local: São Paulo: Ed. Paulinas, 1970. pp. 249.
[8] Omoiousios: termo grego significa: semelhante.
[9] Cl 1.15
[10] DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. 4a ed. Local: São Leopoldo, RS Editora Sinodal, 1993. pp. 63. Coleção História da Igreja. Volume I.
[11] SERENTHÀ, Mario. Jesus Cristo ontem, hoje e sempre – Ensaio de Cristologia. Local: São Paulo: Ed. Salesiana Dom Bosco, 1986. pp. 223.
[12] Um longo poema escrito por Ário, para ser cantado. O Banquete.
[13] DOYON, J. Cristologia para o nosso tempo. Trad. Adaílton G. Ferreira. Local: São Paulo: Ed. Paulinas, 1970. pp. 249.
[14] RUBENSTEIN, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus.Trad. Marija C. Mendes. Local: Rio de Janeiro: Ed. Fisus, 2001. p. 81
[15] NEILL, Stephen. Quem é Jesus Cristo? Trad. Luiz A. Caruso. Local: Rio de Janeiro: Ed. Confederação Evangélica do Brasil, 1961. pp. 73.
[16] Idem.
[17] RUBENSTEIN, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus.Trad. Marija C. Mendes. Local: Rio de Janeiro: Ed. Fisus, 2001. p. 28
[18] NEILL, Stephen. Quem é Jesus Cristo? Trad. Luiz A. Caruso. Local: Rio de Janeiro: Ed. Confederação Evangélica do Brasil, 1961. pp. 73.

[19] Constantino realmente fez tal exigência, ou o termo pelos lideres que não encontraram outro termo para definir a deidade de Cristo.
[20] Homoousia: termo grego que significa da mesma essência.
[21] BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. Local: São Paulo: ASTE, 2001. p. 61
[22] Ek tes oysías toy patrós – “do mais íntimo ser do Pai” – unido inseparavelmente.
[23] Homooyssion to patrí – ser unido intimamente com o Pai; embora distintos em existência, estão essencialmente unidos.
[24] Enanthôpésanta – tomando sobre si tudo aquilo que faz homem ao homem, alargando sarkôthénta, “fez-se carne”; ou, talvez, “viveu como homem entre os homens”, alargando e salvaguardando o credo de Cesaréia “viveu entre os homens” èn anthrôpis politeysámenon. Mas isto parece menos provável.
[25] Eks oyk óntôn – “do nada”
[26] Isto é, moralmente mutável.
[27] Idem.
[28] BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. Local: São Paulo: ASTE, 2001. p. 62

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