“Se nesta cidade, alguém pedir troco ao vendedor de uma loja,
ele certamente começará a debater a questão de o Filho ter ou não ter sido
gerado por Deus. E se alguém perguntar ao padeiro sobre a qualidade do pão, ele
lhe responderá: “O Pai é superior, o Filho inferior”. E se alguém pedir ao
atendente nas termas para preparar seu banho, ele vai lhe afirmar que o Filho
foi criado ex nihilo (do nada).”
Gregório de
Constantinopla
Os antecedentes:
Nos três primeiros séculos a idéia de que Cristo era separado de Deus e
subordinado a Ele não era tão chocante. Orígenes e Dionísio da Alexandria chegaram
a proclamar que Jesus em alguns aspectos era inferior a Deus.[1] Para os
cristãos do primeiro século era claro que Jesus era o Senhor[2]. O
contato da fé cristã com o mundo exterior abriu caminho para as discussões que
tiveram de ser entendidas e interpretadas. Os cristãos tiveram de começar a
fazer teologia.[3]
Na busca em descobrir aquilo que a razão não consegue compreender, a filosofia
surge com suas indagações. O encontro da Revelação da Palavra de Deus e do
pensamento grego criou inquietações, daí o nascimento da teologia como meio de
reflexão sobre diversos assuntos. O subordinacianismo, uma das interpretações
arianas, é fruto da filosofia platônica do “princípio sem princípio”, o “Uno”,
o “não-gerado”. Em segundo lugar vem a Inteligência, que para muitos recebe o
nome de Logos, ou Verbo. Em terceiro, criado pela Inteligência surge a Alma do
mundo. Assim uma degradação emana no princípio da outra.[4] O Logos
não poderia ser verdadeiramente Deus[5], mas um
segundo deus que está entre o verdadeiro Deus e a multiplicidade de criaturas.
Em conseqüência, surgem divergências em relação à natureza do Salvador e da sua
relação com o Pai.
Tais divergências
foram suficientes para acirrar muitos ânimos.
Em Antioquia, por volta do ano 260 Paulo de Samosata, Bispo daquela
comunidade, pregava o monoteísmo, declarando que Jesus era um filho adotivo de
Deus; O Logos fora elevado a Deus por sua grandeza moral e seu amor. Paulo
chegou a ser excomungado, mas os seus pensamentos não. Ário era natural de
Antioquia. Tornou-se presbítero em Alexandria com aproximadamente sessenta
anos. Era um homem alto, magro de cabelos grisalhos e um famoso orador e também
cantor, ensinava sua teologia de forma cantada. Havia estudado com o professor
Luciano. Naquela época, Alexandria era um dos maiores centros teológicos devido
às atividades de Orígenes. Desde 312 o Bispo de Alexandria era Alexandre,
tornou-se um adversário de Ário, mas não estava à altura dele.
O pensamento
Ariano: A idéia de o Eterno ter se tornado homem parecia ser uma grande ofensa.
Criou uma linha de interpretação de que o Pai e o Filho não tinham a mesma
ousia[6]. Não eram
iguais, mas semelhantes[7], “omoiousios”.[8] O Verbo
é a primeira criatura de Deus[9] e não
Deus. Jesus não era Deus. Existiu um tempo em que Ele não existiu. Esta teoria
rejeitada em Alexandria era defendida e ensinada por Ário. Em sua carta a Alexandre,
Bispo de Alexandria relata:
“O Filho não é igual ao Pai e também não é da mesma essência
que ele. Ele foi criado através da vontade do Pai antes dos tempos e éons, mas
não assim que tivesse sido antes de ser criado (...) Cristo é uma criatura
feita do nada”.[10]
“Conhecemos um único Deus, o único não-gerado, o único
eterno, o único sem princípio, o único verdadeiro, o único dotado de
imortalidade, o único sábio, o único bom, o único Senhor, juiz de todos,
administrador imutável e invariável, justo e bom”.[11]
“Anunciamos o Deus não-gerado, em oposição ao que por
natureza é gerado; chamamo-lo sem princípio, em oposição ao que se fez no
tempo”.[13]
“Aquele que não tem princípio fez do Filho o início de todas
as coisas feitas e o promoveu como Seu Filho por adoção. Antes de ele começar a
existir, a Mónade existia, mas a Díade não. Conseqüentemente existe a Tríade,
mas não com glórias iguais. E as substâncias não se misturam entre si. O
superior é capaz de gerar um que seja igual ao Filho, mas não de maior
excelência, superioridade ou grandeza. Por vontade de Deus, o Filho é o que é,
seja o que for isto. Deus é incompreensível ao Seu Filho. Ele é o que é para Si
próprio: o Indizível. O Pai conhece o Filho, mas o Filho não conhece a si
mesmo”.[14]
Ário não obedeceu
às ordens do Bispo Alexandre quando proibido de sair da Cidade, não tendo medo
de seus opositores e viajou para o Oriente conquistando o apoio de muitos.
Eusébio de Nicomédia e Eusébio da Cesaréia conseguiram em dois sínodos o
declarassem ortodoxo e que fosse reinvestido de suas funções de presbítero.
Ário estava preocupado, porque lhe parecia que os cristãos estavam ensinando a
existência de três deuses. A unidade da divindade devia ser preservada. A fim
de salvaguardar a verdade de que Deus é um, ele começou a ensinar que o Filho
de Deus era somente o primeiro e mais elevado dos seres criados. Ele não é eterno, como o Pai é eterno, desde
que o Pai vem primeiro que o Filho. Ele foi criado pela vontade do Pai. Todos
os demais seres foram criados através dele, Deus o usou como um instrumento
para criar o restante do universo, portanto, ele é mais elevado que todos eles.
Jesus era uma pessoa com dotes morais tão sublimes que Deus o adotou como Seu
Filho. Mas ele não é eterno. "Antes
que ele existisse, ele não era".[15]
No começo, Deus era Deus sozinho, sem seu Verbo; e depois Deus era Deus com o
seu Verbo. Se isto é verdade, então o
Verbo que se tornou carne em Jesus Cristo, em nenhum senso de verdade é Deus; o
próprio Ário admitia isto quando escreveu:
"Mesmo que ele seja chamado Deus, verdadeiramente não é
Deus, mas somente participante na graça de Deus como outros o fazem".[16]
A
repulsa: Atanásio (295-375), diácono, tomou a defesa dos princípios defendidos
por Alexandre e levantou-se contra Ário e seus ensinos com a clara intenção de
expulsa-lo da Igreja, gerando mais conflitos. Se os heréticos ganhassem o
cristianismo seria destruído.[17] Isto se
espalhou por todo o Egito. Ário estava sendo desafiado por seu ensino, e
diversos lideres contrários a ele responderam: "Não é isto o que sempre temos
crido e ensinado; esta não é a fé pela qual a Igreja sempre viveu". Adorar
a Cristo como propunha Ário, foi considerada uma blasfêmia, tal pensamento
contradizia a prática da Igreja em que adorar a Cristo é como adorar o próprio
Deus.[18]
As conseqüências:
As disputas ampliaram-se e chegaram até Constantino, Imperador de Roma, na
época não conseguiu demover os pensamentos tanto de Atanásio como de Ário a fim
de evitar que o confronto público aumentasse. Ósio, espanhol, era um
conselheiro cristão e amigo intimo do Imperador, Bispo de Córdoba foi enviado
por Constantino com a posse de uma carta dirigida a Ário e a Alexandre. Sua ida
não trouxe os resultados esperados. Convocou um Sínodo que declarou como
hereges o pensamento ariano e como conseqüência três Bispos que não aderiram as
declarações anti-arianas foram excomungados: Teódoto de Laodicéia, Narciso de
Nerônia e Eusébio de Cesaréia. Porém, pouco antes do grande Sínodo em Nicéia
foram readmitidos. As pressões de ambos os lados eram fortes. Nesta disputa, a
maioria dos Bispos nem sabiam exatamente do que se tratava e o resultado do
Sínodo começou a ser questionável. Na visão de Constantino o que estava em jogo
era a unidade do Império Romano.
O concílio de
Nicéia: o fato motivou o Imperador a interferir diretamente no assunto
convocando um Sínodo de todo o Império que deveria se reunir na casa de verão
do Imperador, em Nicéia no ano de 325. Nem todos os 400 Bispos foram
convidados, apenas 250 lá estiveram, a sua maioria do Oriente. Do ocidente
estavam presentes apenas quatro Bispos e de Roma dois presbíteros. O número de
Bispos pró Ário era de apenas 20 e a proposta deles foi facilmente derrotada.
O Credo Niceno:
Como conseqüência da derrota dos arianos. Um grupo que trabalhou na conciliação
formulando a seguinte questão: “gerado da ousia (essência) do Pai”. Constantino[19] exigiu
que se usasse o termo homoousia[20]. No
Concílio de Nicéia, Eusébio de Cesaréia sugeriu a adoção do credo de sua
própria igreja:
“Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as
coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus,
Deus de Deus, Luz de Luz, Vida de Vida, Filho unigênito, primogênito de toda a
criação, por quem foram feitas todas as coisas; o qual foi feito carne para a
nossa salvação e viveu entre os homens, e sofreu, e ressuscitou ao terceiro
dia, e subiu ao Pai e novamente virá em glória para julgar os vivos e os mortos;
cremos também em um só Espírito Santo”.[21]
O
credo de Eusébio era ortodoxo, porém não resolvia a posição de Ário. Contudo,
serviu de base e foi aperfeiçoado pelo concílio:
“Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as
coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus,
gerado pelo Pai unigênito, isto é, da substância[22] do Pai,
Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito,
de uma só substância[23] com o
Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão
na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se
fez homem[24],
e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu e novamente deve vir para
julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: “Ele
era quando não era” e, “antes de nascer, Ele não era”, ou que “foi feito do
não existente”[25],
bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência”
ou “feito”, ou “mutável”[26], ou
“alterável”[27]
a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatemiza.”.[28]
Os Conflitos: As
divergências geraram conflitos, acirraram ânimos, criaram confusão e
partidarismos por todos os lugares. O próprio Sínodo de Nicéia foi palco de
diversas acusações entre os Bispos lá reunidos através de moções. Um grande
jogo de interesses e poder estavam presentes. Este era o mundo cristão da
época.
Após o Concílio:
Passado o Concílio cada um interpretava o homoousios a sua maneira. No
Concílio de Nicomédia Ário apareceu perante o Imperador a apresentou-lhe uma confissão
que se dizia de acordo com o Credo de Nicéia, o resultado foi à readmissão de
Ário como os demais que haviam sido excomungados. Os arianos de modo geral
retomam sua antiga posição e em alguns casos assume uma maior posição clerical.
Atanásio, que havia se tornado Bispo de Alexandria negou-se a reintroduzir Ário
ao seu cargo no Egito. Finalmente, depois de jogadas políticas Atanásio fora
afastado do cargo sendo enviado ao exílio em Tréveres. Em 336 Ário morre em
Constantinopla.
Concluindo: O que seria a unidade de
Deus? O conhecimento de Deus se dá de três modos diferentes: Pai, Filho e
Espírito Santo? Esta simples definição não responde todas as questões que
envolvem este tema. De certa forma a questão ariana ainda persiste e nas religiões
monoteístas somente no cristianismo há este embate. Como naquela época talvez tenham
dúvidas sobre se Jesus é mesmo Deus, mas a vergonha ou medo de se expor inibem
estas manifestações. Podemos dizer assim que a questão continua presente, em
menor grau é claro.
Bibliografia
[1]
RUBENSTEIN, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus.Trad. Marija C.
Mendes. Local: Rio de Janeiro: Ed. Fisus, 2001. p. 29
[2] Mt 16.16, I Co 12.3.
[3]
DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. 4a ed. Local: São
Leopoldo, RS Editora Sinodal, 1993. p. 63. Coleção História da Igreja. Volume I.
[4]
DOYON, J. Cristologia para o nosso tempo. Trad. Adaílton G. Ferreira.
Local: São Paulo: Ed. Paulinas, 1970. pp. 249.
[5]
Veja a obra Demiurgo do Timeu de Platão.
[6]
Ousia: termo grego significa: não da mesma essência.
[7]
DOYON, J. Cristologia para o nosso tempo. Trad. Adaílton G. Ferreira.
Local: São Paulo: Ed. Paulinas,
1970. pp. 249.
[8]
Omoiousios: termo grego significa: semelhante.
[9] Cl
1.15
[10]
DREHER, Martin N. A Igreja no Império Romano. 4a ed. Local: São
Leopoldo, RS Editora Sinodal, 1993. pp. 63. Coleção História da Igreja. Volume
I.
[11]
SERENTHÀ, Mario. Jesus Cristo ontem, hoje e sempre – Ensaio de Cristologia. Local:
São Paulo: Ed. Salesiana Dom Bosco, 1986. pp. 223.
[12]
Um longo poema escrito por Ário, para ser cantado. O Banquete.
[13]
DOYON, J. Cristologia para o nosso tempo. Trad. Adaílton G. Ferreira.
Local: São Paulo: Ed. Paulinas, 1970. pp. 249.
[14]
RUBENSTEIN, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus.Trad. Marija C.
Mendes. Local: Rio de Janeiro: Ed. Fisus, 2001. p. 81
[15]
NEILL, Stephen. Quem é Jesus Cristo?
Trad. Luiz A. Caruso. Local: Rio de Janeiro: Ed. Confederação Evangélica do
Brasil, 1961. pp. 73.
[16]
Idem.
[17]
RUBENSTEIN, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus.Trad. Marija C.
Mendes. Local: Rio de Janeiro: Ed. Fisus, 2001. p. 28
[18] NEILL, Stephen. Quem é Jesus Cristo? Trad. Luiz A.
Caruso. Local: Rio de Janeiro: Ed. Confederação Evangélica do Brasil, 1961. pp.
73.
[19]
Constantino realmente fez tal exigência, ou o termo pelos lideres que não
encontraram outro termo para definir a deidade de Cristo.
[20]
Homoousia: termo grego que significa da mesma essência.
[21]
BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. Local: São Paulo: ASTE,
2001. p. 61
[22]
Ek tes oysías toy patrós – “do mais íntimo ser do Pai” – unido
inseparavelmente.
[23]
Homooyssion to patrí – ser unido intimamente com o Pai; embora distintos em
existência, estão essencialmente unidos.
[24]
Enanthôpésanta – tomando sobre si tudo aquilo que faz homem ao homem, alargando
sarkôthénta, “fez-se carne”; ou, talvez, “viveu como homem entre os homens”,
alargando e salvaguardando o credo de Cesaréia “viveu entre os homens” èn
anthrôpis politeysámenon. Mas isto parece menos provável.
[25]
Eks oyk óntôn – “do nada”
[26]
Isto é, moralmente mutável.
[27]
Idem.
[28]
BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. Local: São Paulo: ASTE,
2001. p. 62
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